01 janeiro 2017 / Tags:



Aquele era o melhor dia do ano.

A diarista cujo nome ele nunca perguntou havia deixado tudo limpo para a ocasião. Pôs margaridas num velho vazo quebradinho no fundo, lustrou os móveis e os talheres - aqueles herdados da avó que só saiam do armário em dias como esse - e deixou a casa inteira cheirando a uma mistura agradável de limão - do chão - e creme de camarão - da cozinha. 

Ele esperava que ainda gostasse de camarão.
Ele esperava pelo convidado.
Esperava. 

Esperava sentado à mesa retangular que ficava em frente a cadeira vazia do outro lado. Encarava o muro de tijolos desgastados do fundo do prédio ao lado do seu,  desses prédios sem nenhuma janela para espiar uma vizinha mais nova, uma briga de casal ou a paciência que só os velhos lendo livros antigos parecem ter.

Ele esperava ser um desses velhos cheio de paciência.
Ele esperava a tempo demais.
Esperava. 

Aquilo já estava mesmo estranho. Atraso não era do feitio do convidado. Ou será que naquele ano ele tornou-se alguém atrasado? Seriam filhos para pegar na natação? Ou a esposa que não o deixara sair antes de um último beijinho que resultara na prisão em um engarrafamento? 

Ele esperava que a esposa fosse bonita.
Ele esperava a tanto tempo que perdeu as contas.
Esperava.

Desistiu da mesa, sentou-se no sofá com a garrafa de vinho que seria do jantar nas mãos e os cigarros que fumava desde adolescente. Não deu-se ao trabalho de pegar uma das taças. Já passava da meia noite e nenhuma notícia do convidado. Com o conteúdo da garrafa no meio e os cigarros pela metade também, o homem começou a pensar se talvez aquilo não fosse loucura da sua cabeça o tempo todo e agora estava curado. 

Era mesmo aceitável pensar em loucura, mas o fato aconteceu de verdade. Desde o aniversário de 20 anos, ele recebia a visita de si mesmo do ano depois aquele. Sim, loucura, ele sabia. Mas, era verdade. Todos os anos desde aquele aniversário que passara sozinho aos 20, depois de mudar-se para aquela cidade onde não tinha amigos, nem família, nem conhecidos. 

Estava sozinho naquele dia em questão, como em todos os outros. Preparara um jantar de comida congelada e um pack de cervejas para comemorar, depois de receber algumas parabenizações em redes sociais, as quais mal usava e também não pretendia responder. A mãe havia ligado a pouco com um parabéns e uma conversa breve, do pai recebera um murmuro e da irmã não sabiam notícias, estava na rua, divertindo-se sabe sei lá com o que os jovens se divertem nesses dias. 

Assim, por volta das 8 da noite, em horário de verão no período em que o sol ainda terminava de descer no horizonte deixando um rastro laranja e rosa por todo o céu daquela cidade sem vida, ele escutou da cozinha o chacoalhar de chaves na porta. Não esperava ninguém naquele dia e, claramente, ninguém mais tinha a chave além dele. Pegou uma faca que ficava próxima ao balcão. 

Imagine o leitor qual foi a surpresa do homem quando viu que alguém com o seu cabelo, sua camisa favorita, uma calça a qual não lhe servia mais e os tênis de corrida que nunca foram usados pra isso entrou na casa.

- Q-quem é v-você? - perguntou com a voz trêmula demais para ser levado a sério, mesmo com a faca na mão. Calmamente a figura trancou a porta novamente, colocou as chaves onde ele sempre colocava ao chegar e virou-se para ele. Era como olhar no espelho uma versão melhorada de si mesmo. Um espelho para ver o universo paralelo onde uma versão dele dera certo. O homem tinha o rosto corado, saudável, um porte bem maior que o dele e uma barriga bem menor. As roupas lhe vestiam bem. Os tênis, porém, pareciam gastos. - Eu sou você - disse, calmamente o homem, sorrindo para ele. - Quer dizer, você daqui um ano. 

22 maio 2016 / Tags: , , , , , ,


FICHA TÉCNICATÍTULO: Ensaio sobre a cegueira | AUTOR: José Saramago | EDITORA: Companhia das Letras | PÁGINAS: 310

E se você ficasse cego nesse instante?
É, vamos lá, tente.

Quais seriam as suas maiores dificuldades? E desafios? Você poderia causar algum acidente agora? O que deixaria cair no chão? Quem choraria ao vê-lo tateando pelos cantos tentando encontrar para onde ir? E, especialmente, você estaria preparado para viver sem o auxílio dos seus olhos?

Agora imagine se todo mundo do país inteiro ficasse cego.

Mas, não de uma cegueira qualquer. Uma cegueira branca. Como quando estamos numa rua escura e olhamos diretamente pra a luz de um farol e ficamos cegos por um tempo. Imagine que aquela cegueira virasse rotina e que todas as pessoas a partir de agora não pudessem ver nada além de uma imensidão branca.

Desesperador, não acha?



Foi o que sentiu o primeiro cego quando estava no trânsito e de repente não podia mais ver. As pessoas não sabiam como ajudá-lo ou o que fazer, afinal, a cegueira só nos afeta quando estamos próximos a ela.
Então, ele fez o que todos nós faríamos. Foi ao médico. Mas, o médico também não sabia o que fazer e, gradualmente, várias e várias pessoas começaram a cegar e não saber o que fazer.

Inclusive o médico, o homem que ajudou o primeiro cego, a mulher do primeiro cego, a moça com conjuntivite, o rapazinho estrábico, o velho com a venda. Todas estas pessoas sem nome são enviadas pelo governo para um antigo manicômio e precisam construí ali um novo jeito de viver sem realmente consegui se virar sozinhos enquanto o governo descobre o que fazer em relação a isso.

E enquanto eles descobrem, eu e você vamos aprendendo sobre a escrita do genial Saramago, sobre como dependemos de coisas pequenas para viver e especialmente: será mesmo se já não estamos todos cegos?


EXPERIÊNCIA DE LEITURA

Já aviso de imediato que, se você ainda não leu esse livro, você deveria parar agora e lê-lo. Primeiro, porque essa é possivelmente uma das melhores coisas que você vai ler na vida; segundo, porque  é a metáfora perfeita para entender a nossa sociedade e, terceiro, porque eu provavelmente não vou conseguir comentar esse livro sem deixar escapar um ou outro spoiler.

Mas, eu preciso tanto conversar sobre ele!

Confesso que demorei bem mais tempo do que deveria para finalmente tirá-lo da minha estante porque vários aspectos me assustavam sobre ele. O fato do autor não usar a pontuação de um jeito usual, o fato de não ser o meu tipo de leitura mais comum e especialmente o português de Portugal em sua linguagem mais complicada: a poética-literária.

Mas, uma das melhores coisas que fiz foi sentir saudades de Portugal e finalmente decidi superar tudo isso e ler esse livro esplendido. Aliás, me faltam adjetivos pra descrever a genialidade que esse livro representa. Assim como sobram motivos para indicá-lo por aqui.

O que mais encanta nesse livro, além obvio da premissa arrebatadora, é o modo como vamos percebendo através do narrador como as sociedades humanas se organizaram em função do sentido da visão. A imensa maioria das coisas depende intrinsecamente de como vemos as coisas e se sabemos para onde olhar e isto significa dizer que a sociedade entraria em lapso caso perdêssemos o sentido mais fundamental ao homem moderno: a visão.



Saramago também apresenta personagens incríveis e não dá nome a nenhum deles, nos fazendo perceber logo de início que não é preciso nomes, que alguns valores logo se perdem quando o primordial é retirado da vida comum. De que adianta seu nome se não existe comida ou água potável? Pouco a pouco o narrador desconstrói conceitos e mostra como dependemos de coisas mínimas que não teriam a importância que tem, caso nós não atribuíssemos essa importância a elas.

Na minha visão, a peça chave do livro é entender o que era a cegueira branca representa. Acredito que os cegos não ficam cegos, mas percebem a cegueira que vivem e se desesperam ao encará-la de frente. Todos nós escolhemos algum tipo de cegueira ao longo da vida: é conveniente não discutir política, economia ou religião, mas quando vemos o resultado dessa não-discussão traduzida em absurdos como corrupção, crise ou homens-bomba, percebemos que a não-discussão só piora as coisas.  

A mulher do médico é a única personagem que consegue ver em meio ao caos e através dos olhos dela vemos o que os homens se tornam quando são incapazes de viver na sociedade que estão acostumados. Ver as escolhas dela, como ser bondosa e ajudar os outros, às vezes pensando mais neles que nela mesma, pode ser a salvação de muitos dos que dependem dela. Vemos claramente que a bondade de quem vê ajudando os que não veem é libertadora e essencial.

Elevando um problema como a escolha por não ver algo ao extremo, Saramago trás a tona um livro libertador, impactante e essencial na estante de todos os leitores que desejam ler para libertar-se. Recomendo para absolutamente qualquer pessoa que tenha estômago para ver o pior do ser humano, mas também que tenha a sensibilidade de ver o que existe de bom em meio ao caos. A edição é impecável e o prêmio Nobel que estampa na capa não poderia ser mais merecido. Meu conselho é que você leia esse livro ainda hoje. Aproveite!

14 maio 2016 / Tags: ,



Você nunca vai saber, mas às vezes, quando eu fico completamente no escuro, eu abro uma daquelas tuas fotos de antes, do tempo que nos dois éramos algo além de estranhos e que eu sabia aquele sorriso era só meu, assim como o meu era só teu, e falo tudo que eu sinto como se tu pudesse ouvir.

Como se eu, que não acredito em quase nada, acreditasse que se eu pensar forte o suficiente você também vai sentir tanto a minha falta quanto eu sinto a tua agora. E eu choro, ridícula e sozinha, falando tudo que eu queria falar pra alguém que eu nem conheço mais, alguém que não se importa mais comigo.

Cada um de nós tomou um rumo diferente na vida. Somos novas pessoas e mesmo sabendo que aquelas pessoas que éramos não existem mais, mesmo assim eu continuo querendo aquele nós que eu sei que nunca vai voltar, continuo querendo que alguém me faça sentir pelo menos minimamente todas as coisas que eu sentia contigo.

Continuo presa no que era um sentimento tão puro e que agora me parece um espinho. Sempre que meu coração bate atrás de um pouco de vida novamente, lá está ele para me proporcionar uma dor que não é insuportável, mas incomoda pela constância.

Meu amor que era rosa bem cuidada, agora me é espinho e machuca todo dia. Porém, eu sei: Existe um limbo entre o antes e o depois que precisa ser vencido até chegar-se a cura.

A sensação que tenho é de que fiz desse limbo minha morada. Ando presa tentando me soltar e correr do passado, mas sempre com ouvidos atentos, esperando qualquer sinal que me leve de volta ao que não voltará. No final, não vou a lugar nenhum.

E espero, espero, espero, espero.

Deixa estar. Uma dia eu canso de esperar e sigo em frente. Paro de pondera meus passos e te deixo onde é teu lugar: nas minhas lembranças bonitas de nós. Presas dentro de um baú a qual não pretendo mais abrir. Um dia te esqueço. Até lá sigo sentindo-me em casa nos piores lugares possíveis e isso é bom. Pelo menos não acho mais que o teu abraço é minha casa.

01 abril 2016 / Tags: ,


FICHA TÉCNICATÍTULO: Pequena Abelha | AUTOR: Chris Cleave | EDITORA: Intrínseca | PÁGINAS: 271
Você já quis ser uma libra esterlina?
É, isso mesmo, a moeda.
Abelhinha já.

Pense bem. Assim, seria mais seguro andar por aí. As pessoas tendem a valorizar bastante a libra. É a moeda da rainha, afinal. É assegurado o ir e vir da moeda para qualquer lugar, sempre muito bem recebida. As pessoas ficam felizes quando encontram uma libra pelas ruas. E, especialmente, sendo uma libra é possível deixar a destruíção da vila onde nasceu na Nigéria sem olhar para trás, sem morrer de saudades da irmã, sem sentir os cheiros ocres de destruíção e recomeçar.

Mas, Abelhinha não pode ser uma libra. Ela é uma menina que fugiu do ódio, da dor e da Nigéria para segurar a mão da única pessoa que uma vez estende-a para ela através de uma carteira de motorista. E ao chegar na terra da rainha, percebeu que mesmo se aprendesse seu idioma, as coisas não seriam fáceis, muito mesmo as pessoas.



Mas, espera. Ocorreu algum erro no sistema? Abelhinha finalmente poderá sair daquele lugar horrível onde prende as pessoas que chegam e não podem entrar. Ela e outras mulheres estão prestes a sair e uma nova onda de esperança lhe cerca. Porém, a cada passo uma nova dúvida.

O que aconteceu naquela praia?
E qual o seu verdadeiro nome, Abelhinha?
A mão que conta os amigos verdadeiros está disposta a doar o dedo por eles?

Ah, o resto da história você precisa ter estômago pra ouvir através da própria Abelhinha, uma jornalista corajosa e um garotinho vestido de Batman.


EXPERIÊNCIA DE LEITURA

Estava eu com a minha melhor amiga no shopping e ela decide ir na livraria. Eu, por amor ao meu bolso, evito o máximo possível ir a uma livraria, mas agradeço imensamente por ela ter demorado um pouquinho mais e eu ter conseguido colocar os meus dedos nesse livro incrível. 

Literalmente me conquistou na primeira metáfora. 

Sou completamente apaixonada quando livros fazem isso. É justamente essa metáfora que eu trago no resumo aí em cima, espero que cada um também se apaixone como eu. De coração. 

Porque esse aqui é um daqueles livros que cada parágrafo me parecia um tapa na cara. Faz lembrar como a empatia que um livro causa uma mudança completa na vida de quem o lê. A realidade mostrada no livro é muito distante de mim e mesmo tendo consciência dela, através de notícias sobre o mundo, o poder de ver o mundo através dos olhos de Abelhinha que só a literatura pode proporcionar a alguém é mágico e importantíssimo. 



Ao longo das páginas eu desconstruí ideias erradas sobre imigração, reforcei ideias que são convicções a muito tempo sobre trocas culturais e como lidamos com elas. 
Me apaixonei perdidamente pelo modo de ver o mundo que a abelhinha tem, revi conceitos importantes sobre o jornalismo que quero exercer agora que finalmente estou me formando. 

Além disso, somos presenteados com o reforço da ideia de que com amigos todos os problemas são amenizados e como um abraço e apoio pode nos ajudar a vencer as mazelas que assolam nossa vida. 



Em tempos de terrorismo, intolerância, preconceito, "Pequena Abelha" é extremamente pertinente pra nos lembrar de que empatia pode nos salvar de sucumbir a uma sociedade banhada em sangue e ódio. 

Recomendo a leitura para todos que tem estômago pra uma realidade que está aí do nosso lado e as vezes fechamos os olhos. Um tapa que merece ser recebido por todos nós e que ensina na dor. 


VÍDEO

Um agradecimento especial pro meu irmão lindo Ivys Sousa que fez as fotos do livro e o foco do meu vídeo e a você por ter lido essa resenha <3
Espero que tenham gostado!
Beijos!